domingo, 24 de abril de 2011

Viagem

         Eu via do espelho a cidade afastando, ficando pequena, até sumir. Desse mesmo espelho eu via meus olhos cheios de saudades, e cada vez que eu me via, com mais saudade ficava. Tentava afirmar para mim aquele ditado: “eu era feliz e não sabia”, mas logo me afirmava que eu era feliz com aquele presente. Perguntava-me então: por que não ser feliz agora? Esse presente faz parte de mim e sempre fará. Confundia-me dentro daquele ônibus que balançava a mim e a meu juízo. Tentei ler as últimas folhas de Lucíola mas não consegui. Fui dormir pensando nas besteiras que ocupavam minha mente, pois afinal não conseguia fazer nada além de pensar.
Acordei umas horas depois com um homem meio moço meio velho cutucando meu braço. É hora do jantar, disse ele com um sorriso amarelo. Desci do ônibus em sua companhia, o nome dele é Alfredo, meu único colega até agora. Ficamos os quinze minutos conversando numa mesa meio isolada dos outros viajantes, comendo batatas, biscoitos e tomando suco de laranja. Alfredo contou que era médico da cidadezinha que viveu desde pequeno, estava indo para a cidade grande atrás de uma formação melhor. Eu, continuando minhas paranóias perguntei se ele era feliz onde morava. Ele disse que era, mas esperava ser mais. Esperava formar-se e ser um excelente médico. Não sabia exatamente como fazer, mas sabia o que queria. Eu perguntei muitas outras coisas sobre ele quando me perguntou se iamos ficar falando a noite toda sobre ele. Eu, encabulada, disse que não. Levantamos e voltamos para o ônibus.
No meio do curto caminho ele interrompeu o silêncio perguntando o que eu ia fazer na cidade grande, eu disse que tinha intenção de encontrar meus pais. Na verdade não sabia quase nada sobre eles, mas acreditava fielmente que os encontraria. Alfredo se acolheu ao meu lado e eu contei que tinham me deixaram no interior quando tinha treze anos (os rostos ainda fervem em minha cabeça sempre que lembro). 
Talvez seja muito difícil, talvez eu não consiga. Mas eu quero, eu sonho em encontrá-los. Eu só lembro do meu pai colocando-me no colo, minha mãe fazendo tranças em meu cabelo... Nossa! Falei tanto que quando percebi Alfredo dormia. Não fiquei chateada, eu falo muito mesmo. E aproveitei o resto de madrugada para dormir.
         “Todo mundo passando tudo, agora! Todo mundo caladinho!” Foi com esses gritos que acordei na pior sexta-feira da minha vida. Alfredo agora estava longe de mim. Os ladrões haviam separado os homens das mulheres. No banheiro um deles estuprava uma jovem, era assustador os gritos que vinham lá de dentro. As velhas choravam e os marginais batiam em suas cabeças sem pena e sem dó. Eu só sabia rezar para escapar de tudo aquilo. Minhas preces eram fortes, eu chorava em minha cadeira, mas não deixava de pedir. Ouvi tiros e cada vez mais eu ficava assustada. Alfredo gritou pelo meu nome e conseqüentemente ouvi outro tiro e uma voz rouca dizendo: Esse também não fala mais! Eu chorava com agonia, meu coração apertava tanto que eu tinha vontade de encolher-me toda. O que doía mais era que minha oração dizia “seja feita vossa vontade” mas eu desejava viver para encontrar meus pais. Eu estava cada vez mais horrorizada a ponto de não perceber muito o que acontecia. Eu só sabia pedir mais e mais.
         Os ladrões, que carregavam muitas bolsas, pediram para parar o ônibus e assim foi feito. Da minha janela eu via um apontando a arma para o motorista, os gritos do banheiro pararam. Uns brincavam com os corpos mortos enquanto saiam e eu só sabia rezar. Um dos infelizes, depois de ter feito a desgraça toda, ainda desceu atirando; uma das balas perfurou-me a cabeça.
         Foi feita a vontade de Deus. E como num fio de alegrias eu realizei meu sonho.

Camila Barros.

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